A dança das descobertas

Maria de Fátima de A. Silveira, Dulce Maria Rosa Gualda, Vera Sobral, e Ademilda Maria de S. Garcia

Maria de Fátima de A. Silveira, Enfermeira, Doutoranda EEUSP, Docente do Departamento de Enfermagem da Universidade Estadual da Paraíba.

Dulce Maria Rosa Gualda, Obstetriz, Professor Associado — Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo

Vera Sobral, Enfermeira, Doutora em Enfermagem, Docente da Escola de Enfermagem da Universidade Federal Fluminense.

Ademilda Maria de S. Garcia, Enfermeira, Mestre em Saúde Pública. Docente do Departamento de Enfermagem da Universidade Estadual da Paraíba

Resumo:

Numa forma lúdica e criativa, as autoras apresentam a metodologia utilizada para uma coleta de dados, desenvolvida através da metáfora da dança. O instrumental foram as oficinas articuladas em Curso de Extensão, oferecido a enfermeiras que cuidam de mulheres em sua prática cotidiana. O processo é descrito como um Encontro, marcado pela emoção, alegria, comunhão, trocas e descobertas, onde o principal objetivo alcançado foi a construção coletiva de conhecimentos acerca do corpo da mulher cuidada. A socialização de experiências, o debate de idéias, a reflexão sobre a assistência rumo a uma prática permeada pela solidariedade e humanização, o cuidado às cuidadoras, a redução de assimetria entre pesquisadoras e pesquisadas — as bailarinas, foram além da geração de dados para uma pesquisa.

Citation information:

Maria de Fátima de A. Silveira, M. F. A., Gualda, D. M. R., Sobral, V., & Garcia, A. M. S. (2002). A dança das descobertas. International Journal of Qualitative Methods, 1 (1), Article 7, Retreived DATE from http://www.ualberta.ca/~ijqm/


 

Traduzir o indizível, mas nem por isso impossível. Relatar a emoção, a festa, a alegria, a comunhão, a troca, um processo marcado por descobertas, por vezes dolorosas, porém sempre afetuosas. Difícil? Eis o nosso desafio, compreendendo a limitação de expor em palavras o que foi vivido. Por mais criativas que tentemos ser, sabemos da dificuldade de dar forma escrita ao que vivenciamos, tanto pela quase impossibilidade técnica quanto pelo limite ético-afetivo.

Mas, afinal, do que vamos falar? Podemos começar dizendo que se trata da descrição de um processo metodológico para coleta de dados de uma tese de doutorado. Só isso?

O processo se deu através de oficinas de sensibilidade, criatividade e expressividade, onde a horizontalidade da relação pesquisadoras/pesquisadas, o cuidado às cuidadoras, a troca de conhecimentos, foram o mote principal. Inusitado? Sobre alguns aspectos, nem tanto; já há algumas histórias, poucas, é verdade. A novidade? As oficinas configuraram um Curso de Extensão, oferecido a enfermeiras que prestam assistência a mulheres.

Como pensamos em apresentar-lhes a experiência? Utilizando um recurso criativo e poético: a metáfora da dança. A inspiração? A antropóloga e dançarina Valerie Janesick (1994).

E, então, quer nos dar a honra dessa contradança? Venha dançar conosco!

Por que dançar?

Concordamos com Janesick (1994) quando diz que a dança é uma forma de arte interpretativa e que o desenho da pesquisa qualitativa é tão interpretativo quanto a dança. Para nós, bem.... a pesquisa, como nós desenvolvemos, parece-se com a dança por outros motivos, também: os ensaios; a trilha sonora que nos anima; a incerteza se saberemos montar coreografias adequadas; o jogo de cintura e flexibilidade para deixar vir os passos das nossas, literalmente, parceiras/participantes; a dúvida se a nossa performance irá agradar àquelas que avaliam-nos; e, finalmente, o risco de "dançar" se algo der errado.

Toda dança, afirma Janesick (1994), faz uma declaração e começa com uma questão. Declaramos que cuidamos com o corpo, ensinamos a cuidar com o nosso corpo e cuidamos no/do corpo. Entretanto, a concepção que a enfermeira tem do corpo do paciente que ela cuida era um silêncio no discurso teórico-prático da Enfermagem brasileira.

Perguntamos: Qual o simbolismo que as enfermeiras atribuem ao corpo da mulher cuidada? Quais os aspectos patentes (profanos) e latentes (sagrados) que as enfermeiras identificam no corpo da cliente?

Optamos pela etnografia, cujo pressuposto é que um grupo de indivíduos cria uma cultura que orienta a visão de seus membros e a forma pela qual eles estruturam suas experiências (Polit & Hungler, 1995). Daí sua escolha enquanto método: por ser coerente com o suporte teórico do estudo, respaldado na construção cultural do simbolismo e tendo em vista que as enfermeiras, enquanto profissionais, constituem um coletivo. Ademais, como frisou Canevacci (1990), o "corpo é um mapa cultural."

Desenvolvemos uma coreografia — as oficinas1 - capaz de articular o corpo das participantes como produtores de subjetividades e fonte no processo de conhecimento e, ao mesmo tempo, propiciar uma participação efetiva das pesquisadoras na dança, rompendo a desigualdade, envolvendo o grupo e as coordenadoras numa relação de confiança e descontração.

Tal relação encontra sintonia com o uso da etnografia, pois, para Gualda (1995), "os etnométodos possibilitam ao pesquisador aprender e experimentar com as pessoas estudadas no seu ambiente natural," relação promissora, ainda mais quando coordenadoras e participantes das oficinas são enfermeiras, lidando com a mesma linguagem e com o mesmo sistema simbólico.

O relato das "oficineiras/dançarinas" Silveira e Garcia (1997, 1998) ratifica a oficina como espaço privilegiado para a compreensão dos fenômenos de enfermagem no ensino de graduação, o que se traduz, muitas vezes, na possibilidade de reflexão sensível e ação criativa sobre a formação e a prática profissional das enfermeiras.

As autoras validam a trajetória como caminho possível para a criatividade e sensibilidade que o cuidar comporta; valorizando os sentimentos e emoções na vivência coletiva, permeada pela parceria, compromisso e no sentir/aprender/fazer mútuos.

Com base nessas premissas e experiências das autoras deste estudo, entendendo que o encontro entre pesquisadoras e enfermeiras, durante uma pesquisa, não deve ser vivido apenas como um caminho de mão única, onde apenas a primeira parte "ganha" ao obter dados, construir hipóteses e elaborar teses, ancoramo-nos na experiência de Tavares (1998) e montamos o Curso de Extensão "O cotidiano do cuidado à mulher: rotinas e transcendências," a fim de propiciar, além dos momentos de debate e reflexão sensível, durante os encontros para a realização das oficinas, um certificado capaz de integrar e enriquecer o curriculum das participantes.

Partir para uma coleta de dados através de oficinas foi um passo ousado e um esforço no sentido de vencer a "metodolatria," definição de Janesick (1994) ao primado do método como ápice de um processo de pesquisa, e buscar encontrar uma forma de apreensão da realidade capaz de produzir conhecimentos coletivos, mas também de partilhar momentosde prazer e alegria com todas as envolvidas, rompendo a penosa "via-sacra" em que se constitui quase sempre esse percurso.

Preparando a dança

Apesar da experiência, necessitamos adaptar "coreografias" desenvolvidas por nós e outras, visando adequar as técnicas aos objetivos da dança. Realizamos, então, uma "dança do acasalamento" com alguns autores que subsidiam o projeto de tese: Eliade (1991, 1996, 1998, 1999) e Ortega y Gasset (1967).

Posteriormente, ensaiamos a dança com um grupo-piloto formado por docentes de enfermagem, para ajustar detalhes técnicos, vinculação com os objetivos propostos, geração de dados necessários, tempo de cada coreografia-oficina, materiais suficientes e espaço.

A pesquisa foi realizada em Campina Grande, segunda maior cidade do Estado da Paraíba, um dos mais pobres do Brasil. Com cerca de quatrocentos mil habitantes, a cidade dispõe de serviços de saúde básicos, ampliado desde 1995 com a implantação do Programa de Saúde da Família (baseado na experiência cubana) e de ampla rede hospitalar nas diversas especialidades e que atende não só ao município mas a toda região circunvizinha. As principais fontes de renda são o comércio, a economia informal e o turismo de eventos.

Os convites às participantes foram impressos e entregues pessoalmente às enfermeiras, nas instituições de saúde públicas e privadas, visando obter o melhor leque possível de representação dos níveis primário, secundário e terciário de assistência a mulheres. Dez enfermeiras aceitaram o convite para participar da "dança."

As "dançarinas" têm entre 25 e 61 anos, com tempo de formação variando entre cinco e vinte e três anos e representam: um serviço de atendimento integral à saúde da mulher municipal (02); o Programa de Sáude da Família (04); um serviço de Planejamento Familiar ligado a um hospital de ensino (01); um Programa de Atenção à Mãe Adolescente (01); a chefia de enfermagem de um hospital e maternidade privado (01); e uma Unidade de Terapia Intensiva (01), também da rede privada. Elas escolheram para sua identificação, na divulgação dos resultados, nomes de flores: Orquídea, Dália, Carinho-de-Mãe, Gerânio, Lírio, Jasmim, Tulipa, Margarida, Violeta, e Cravo .

Nada mais adequado para o salão de dança do que a galeria de exposição do Museu de Artes Assis Chateubriand, adaptado para o baile: colchonetes, ventiladores, aparelhos de som, gravadores, cortinas, tudo confortável e aconchegante. Na constituição do cenário, a decoração do ambiente, é claro, constou de flores, plantas, móbiles.

Uma festa que se preze e marque as participantes deve ter uma trilha sonora inesquecível, coadjuvante dos momentos de reflexão sensível, descontração e relaxamento - Encontro. Na impossibilidade de dispormos de uma orquestra ao vivo, fitas cassetes editadas e CDs cumpriram seu papel. A música ajudou a criar clima, introduzir questões, registrar emoções, gravar recordações, expressar sentimentos/conhecimentos.

Preparar o corpo para a dança exigiu, também, um ritual de alimentação. O lanche, presente em todos os encontros, extrapolou o sabor dos alimentos em sua concretude, significando momentos de socialização e trocas, onde os afetos foram simbolizados, expressos e representados. Foi um ritual de ofertas entre as participantes, momentos de cuidado, prazer e atenção.

Para dar conta da "coluna social" que registraria "nossos momentos," aquilo a que o grupo deu significado e foi expressão de afeto, montamos a Memória do Grupo, inspiradas em Nora (1984): " a memória é alguma coisa capaz de soldar o coletivo." Utilizamos a entrada da sala para afixar frases mais importantes, reclamações, indagações, materiais produzidos nas atividades, fotos reveladas de cada encontro formando um álbum. O registro de todo o evento ficou gravado em fitas cassetes (muitas!) e algumas fitas de vídeo, para tornarem possíveis retomadas, ainda que distanciadas, em momentos como este.

Para a nossa dança, seguimos as normas sobre ética do Conselho Nacional de Saúde, em sua Resolução 196/96, através do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

Uma "festa imodesta" — um balé em três atos, múltiplas coreografias

1. Primeiros passos — visualizando o corpo da enfermeira no cuidado

A nossa experiência em coordenação de oficinas com os mais diversos grupos evidenciou a necessidade de, ao iniciar um trabalho, explorando qualquer tema, tomar como ponto de partida a instauração de um espaço/processo onde os participantes possam falar de si, verem-se e sentirem-se aceitos pelo grupo e pela coordenação.

Iniciamos a primeira oficina apresentando as coordenadoras do curso, seus objetivos (a coleta de dados para a tese que estaria sendo realizada simultaneamente) e a metodologia. Em função de esse tipo de metodologia suscitar o afloramento e a expressão de sentimentos, emoções, conflitos pessoais e profissionais, estabelecemos com as participantes um "contrato" no qual todas se dispuseram a tornar sigiloso tudo o que acontecesse durante a convivência no Encontro, como forma de garantir confiança e respeito mútuo.

Começamos! A princípio, tímidas. Pés descalços, sentadas em colchonetes. Dúvida: que será?. Alegria de reencontros. As expectativas, diferentes. Medo de ser diferente do grupo. Clima gostoso, colaboração indispensável de ventiladores no outono (como?) do nordeste. Cheiro de incenso no ar. Música suave, provavelmente um jazz.

Flores e frutas dispostas em cestas sobre uma toalha no centro da sala, cenário de um piquenique, indicação de uma dança moderna para a apresentação das participantes — a comilança de frutas.

A coreografia tem início com a nossa escolha de frutas que se identificavam conosco, pela cor, textura, sabor, cheiro, quando pratos foram preparados e interações ocorreram entre todas, trocas, partilhas, literais, de frutas.

Na degustação das frutas, com direito a "lambuzagem," dissemos nome, local de trabalho, características pessoais e profissionais associadas às frutas. Hum! Bom, hein?. E ainda alimentamos nossos corpos, de forma leve e natural, para prosseguir na dança. A integração? Nas palavras de uma dançarina: "isso aqui é uma comunhão!"

Deitadas, relaxamos. Uma voz baixa e pausada orientava a visualizarmos como sentimos os nossos corpos ao cuidarmos de mulheres em nossa prática profissional. A condução do relaxamento também relaxa a coordenadora, ajuda a respirar melhor e acalmar o coração que, disparado, não "parava" de indagar se íamos conseguir.

Essas danças cada vez mais incorporam outros elementos de expressão! No nosso caso, moldes de corpos2, folha de papel em branco, cola, tesoura, lápis hidrocor, canetas. Montamos nossos corpos, recortando, pintando, escrevendo, a partir dos moldes, integrando partes de um e de outro, na nossa capacidade de inventar, modelar, modificar ou absorver a armadura que as instituições nos impõem.

Pausa para o lanche. Mais encontros.

Realizamos as apresentações individuais das bailarinas. Cada uma, de seu lugar no palco-colchão, desenvolveu uma performance própria e espontânea, fazendo a sua leitura do próprio corpo enquanto instrumento do cuidar. Esse momento foi seguido pela integração progressiva de opiniões semelhantes, discordantes, exemplos foram citados, queixas relatadas, emoções divididas e, pouco a pouco, foi se constituindo o compasso e construindo-se a identidade do grupo.

Uma dança assim exige muito do corpo, da mente e do espírito. Uma pausa para uma auto-massagem, sentindo cada parte do corpo, tocando, identificando pontos de tensão, relacionando-se com o corpo agora de outra forma, ampliando a percepção desse corpo.

Uma coreografia um tanto quanto tribal foi introduzida para a aproximação mais efetiva e afetiva. Sentadas em círculo no chão, uma atrás da outra, em forma de trenzinho, massageamos as costas da dançarina à nossa frente, os braços, os cabelos, fazendo um carinho e reconhecendo, naquele corpo, o corpo de uma mulher, cuidadora, como nós. A roda se inverte, quem massageou foi tocada pela colega, um misto de respeito, agradecimento, troca.

Concluímos aquele encontro junto com o sol, que também se retirava do cenário na janela, numa dança circular que festejou o corpo que cuida, que trabalha, que sustenta a família, que tem e dá prazer.

2. Simbolizando o corpo da mulher cuidada

O hall que antecede a sala de espetáculos já continha um mural preparado com o material produzido no dia anterior, as fotos, algumas flores. Surpresa boa! "O que será que vocês preparam para a gente hoje?"

Para essa apresentação, a cenografia providenciou símbolos de compreensão para o grupo (a bandeira nacional, os símbolos do homem e da mulher, a pomba que simboliza a paz universal, o anjo cupido e a lâmpada que representa a Enfermagem) e um vaso com rosas vermelhas.

O aquecimento com os símbolos foi uma estratégia montada visando a auxiliar a exposição sobre simbolismo e evoluir, coreograficamente, em busca do símbolo que as dançarinas escolheram para representar o corpo da mulher que nós cuidamos.

Antes de começarmos a dançar, relaxamos os corpos, para que a razão desse lugar à sensibilidade e a imaginação voasse, permitindo-nos associar um objeto ao corpo da mulher que cuidamos. Esse objeto iria transmutar-se até chegar a ser um símbolo. Sons de água e de vento ajudaram nessa viagem.

Agora, um grande altar se encontrava no palco, e nele estavam presentes objetos, elementos da natureza e materiais que revelavam alguma faceta da mulher, passando pelos relacionados à beleza, à vaidade e à vida moderna e aqueles tidos como "coisas de mulher," até materiais utilizados pelas enfermeiras nas instituições de saúde para o cuidado às mulheres.

Na parte inicial da coreografia, dirigimo-nos, individualmente, ao altar para escolher, inicialmente, três objetos que representariam o corpo. Cada uma, ao se exibir, utilizou tempo e estratégia diferentes para a escolha. Movimentos de idas e voltas ao altar, colchão, trocas com amigas para enriquecimento da performance. Tantas incertezas. Passo inusitado esse, de pensar e representar um corpo que nunca é falado no curso de dança, lá na universidade, mas que constitui o nosso locus de cuidado. Apresentamos nossos objetos, interpretando o simbolismo ali encontrado.

Ainda bem que um intervalo veio para aliviar de tanta, tanta o quê? Emoção, é o que mais perto define. Café, bolo, sanduíches, ajudam a descontrair e falar de nós de outra forma.

Volta ao palco. Dessa vez em pequenos grupos. O material da dança já se encontrava entre nós, eram os mesmos da etapa anterior. Bem mais fácil dançar em grupo. Fomos eliminando materiais e chegamos, novamente, a três objetos.

Nova rodada e falamos da escolha.

Partimos então para a dança coletiva. Grupo todo reunido, tantas semelhanças! Estávamos nos afinando enquanto grupo, dizem que o símbolo tem esse poder. Fomos classificando e agrupando objetos e materiais. Num certo momento, parecia uma grande confusão e não a preparação de mais uma etapa da coreografia. Mas rimos tanto, cantamos, cochichamos! Um certo mistério é preciso. Enfim, decidimos.

Os recursos da dança, porém, não foram suficientes para a expressão porque, afinal, chegamos ao momento da grande descoberta. Recorremos ao teatro para auxiliar. Nossa mestre de cerimônia encarregou-se de nos apresentar e, cada uma de nós, de apresentarmos uma característica do símbolo, a partir de nossas características pessoais.

Euforia e confraternização. Momento de reconhecimento: "flores para as três mulheres que estão cuidando tão bem da gente." Hora de celebrarmos todas as mulheres do mundo. Agora, cada uma ia ao centro da roda, fazendo sua própria evolução, sendo homenageada também.

Muita coisa ainda nos esperava. Levamos para casa o texto com a metáfora do bosque (Ortega y Gasset, 1967) a fim de nos orientar no último ato. Foi preciso muitas leituras. Inspiração filosófica para a dança é fogo!

3. Finalizando a festa: adentrando no bosque do corpo

O cenário, dessa vez mais simples, estava composto por uma cesta-coração completa de flores roxas e lilazes, nossas cores. Um caldeirão repleto de ervas medicinais, ênfase para a nossa constatação de que "foi também no caldeirão das bruxas que as enfermeiras se fizeram," como dito por uma dançarina.

Um primeiro movimento corporal, em relaxamento, levou-nos a passear no nosso bosque pessoal. Deveríamos adentrar, procurando perceber o que há nele e como nos sentimos nessa viagem para, em seguida, refletirmos: "no corpo da mulher que eu cuido, há árvore, há bosque? O que é a árvore e o que é o bosque nesse corpo?" Algumas de nós não conseguiram avançar muito nesse passeio. Voltamos para de onde havíamos partido.

O cenário rapidamente havia se modificado. As contra-regras foram dinâmicas, embora nem sempre silenciosas. Ao abrirmos os olhos, após o relaxamento, dois grandes painéis em tecido faziam o pano de fundo: um continha uma mulher-árvore e o outro, mulheres-bosque. Surpresa e encanto. Coisas de artista plástico paraibano talentoso.

O chão do palco repleto de imagens e palavras. Aparentemente simples, a coreografia foi desenvolvida com dificuldades e algumas dores. Enxergar e expressar com imagens e palavras o que há, para nós, de árvore e bosque — aparência e essência — nos corpos das mulheres. O convite para o lanche nos resgata desses momentos de engasgos e atropelos de passos.

Enfim, conseguimos! E veio muito mais, como sempre.

Um baile de formatura encerrou nosso ENCONTRO-DANÇA.

***

Três meses depois, nos reencontramos para discutirmos e avaliarmos tudo o que havia sido desenvolvido e validarmos, após termos tido acesso à transcrição integral das fitas, o que poderia ser divulgado na tese.

O pão e o vinho enfim repartidos.

A nós que coordenamos todo esse processo, cabe-nos dizer que a metodologia utilizada para coletar dados para a tese de doutorado extrapolou, em todos os sentidos, as nossas expectativas. Alcançamos ali, da forma mais apaixonada, prazerosa e surpreendente os objetivos da pesquisa, o que é para nós difícil de ser contemplado, desta forma, em outra abordagem metodológica e que envolva ambos os sujeitos do processo.

A abordagem das oficinas permitiu articular e fazer emergir não apenas as concepções das enfermeiras sobre o corpo da mulher cuidada, mas propiciou às participantes momentos de auto-avaliação, confronto com a teoria na formação profissional, articulação da vida pessoal com a assistência que se presta às mulheres, possibilidades de avanço na construção de um cotidiano permeado pela compaixão, solidariedade e humanização.

A nossa intenção em socializar experiências, debater idéias, refletir sobre a prática profissional, reduzir assimetrias entre pesquisadoras/pesquisadas, o acolhimento e o cuidado dispensado às cuidadoras, também foi além. Trocamos conhecimentos, é certo, porém para nós o mais importante é que, juntas, CONSTRUÍMOS CONHECIMENTOS, elaborando conceitos, redefinindo ou anulando normas, demarcando outros espaços, construindo outras possibilidades de ser e fazer enfermagem, onde houve espaço para a provisoriedade e a coexistência de temporalidades, o que inclui um jeito de ser enfermeira marcado pela relação de submissão institucional, na conformação de uma prática que anula o corpo de quem cuida, que impede a visualização do corpo cuidado e que contém os passos na dança da vida e no jogo do trabalho.

O feedback que as enfermeiras nos deram durante o processo informa como elas se sentiram e que importância atribuíram ao curso, em depoimentos tais como "estou ansiosa porque vai acabar" e "vou utilizar o que estou aprendendo aqui dessa metodologia nos trabalhos com a minha comunidade."

Efetivamente, podemos sentir ainda melhor o alcance que tais palavras tiveram, quando, por exemplo, o grupo, ao receber a orientação para apresentar o símbolo do corpo da cliente, desenvolveu toda uma performance para isso, o que não havia sido solicitado, utilizando a "linguagem" que vinha sendo desenvolvida na metodologia, uma expressão de que "entraram no clima" e validaram a proposta, ou quando inseriram uma parte da memória por elas construídas no mural da memória coletiva.

O encontro em que, a priori, teríamos, de um lado, participantes de uma pesquisa, de outro, docentes pesquisadoras, transformou todas em mulheres, enfermeiras, pesquisadoras — bailarinas! E a metodologia nos colocou numa relação de horizontalidade, a hierarquia perdeu espaço, a desigualdade foi substituída pela diferença. Nunca nos sentimos tão iguais! De fato, o pão e o vinho, enfim repartidos.

Notas:

1 Viezzer (1987) conceituou oficina como uma instância de reflexão e ação, onde a busca para explicar a realidade faz confluir teoria e prática. Além de instrumento pedagógico, as oficinas são, também, instrumento de conhecimentos, na compreensão de Carneiro e Agostini (1994).

2 Os moldes utilizados foram retirados de Gorczevisk e Franzói (1993), e representam um corpo mecanizado, simbolizando o corpo institucional, e outro contendo silhuetas e partes de corpos a serem montados.

Referências

Canevacci, M. (1990). A antropologia da comunicação visual. São Paulo, Brasil: Brasiliense.

Carneiro, F.& Agostini, M. (1994). Oficinas de reflexão — espaço de liberdade e saúde. Trabalho Feminino e Saúde. Rio de Janeiro, Brasil: Fundação Osvaldo Cruz.

Eliade, M. (1991). Mefistófeles e o andrógino. São Paulo, Brasil: Martins Fontes.

Eliade, M. (1996). Imagens e símbolos. São Paulo, Brasil: Martins Fontes.

Eliade, M. (1998). Tratado de história das religiões. São Paulo, Brasil: Martins Fontes.

Eliade, M. (1999). O sagrado e o profano. São Paulo, Brasil: Martins Fontes.

Gorczevisk, D., & Franzói, N. (1993). Seminário metodologia da visualização — memória. Unpublished, São Paulo, Brasil.

Gualda, D. M. R. et al. (1995). Abordagens qualitativas: sua contribuição para a enfermagem. Journal of the School of Nursing/USP , 29, pp. 297-309.

Janesick ,V. J.(1994). The dance of qualitative research design — metaphor, methodolatry and meaning. In N. K. Denzin & Y. S. Lincoln (Eds.), Handbook of qualitative research. pp.209-219.Thousand Oaks, CA: Sage.

Nora, P. (1984). Les lieux de mémorie:la nation. Paris: Gallimard.

Ortega Y Gasset, J. (1967). Meditações do Quixote. São Paulo, Brasil: Livro Ibero-Americano.

Polit, D. F. & Hungler, B. P. (1995). Fundamentos de pesquisa em enfermagem. Porto Alegre, Brasil: Artes Médicas.

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Tavares, C. M. M. (1998). A poética do cuidar — a perspectiva da imaginação criadora na enfermagem. Rio de Janeiro, Brasil: Federal University of Rio de Janeiro - Anna Nery Nursing School.